
O espaço era pobre, sem quadros, nem telas, nem bonecos, nem nada... Apenas gente e cadeiras básicas de sala de espera de quem desespera e despreza pormenores. As paredes eram de um branco sujo pelo passar do tempo, que fazia sombrio o cenário, encarregando-se o Inverno da restante decoração, com o seu mais gélido frio que se nos ia entranhando.
Era dia de nova consulta. A sobrelotação era evidente, assim como o desconforto do espaço. Tal como nós, vinham pais e filhos de todo o país; consegui até aperceber-me que das ilhas também haviam "representantes". Era portanto, tudo novo... seria mais uma das consultas iniciais que percorremos - a ultima - porque dali, acabaríamos por trazer (apesar de tudo), o mais experiente, conciso e completo relatório, relativo ao diagnóstico do nosso filho.
Entretanto a espera conseguiu derrubar-me, em minutos. Não sei precisar quantos, apenas os suficientes, para ver com os meus olhos uma concentração tal de toda a espécie de síndromes e anomalias, cuja visão me marca, até hoje!
Outras linguas se faziam ouvir... palavras poucas, mal ditas, mal pronúnciadas, a maior parte delas profundamente silênciadas. Estranhos "grunhidos" para os meus ouvidos ecoavam forte, como que numa desgarrada - Tinha a sensação que vinham de todos os lados, e instintivamente os meus olhos percorriam cada uma das faces por detrás destes sons desconhecidos. Com eles o rosto da diferença severa. O rosto, e muito, muito mais... Poucos minutos se passaram até eu desistir.
Logo no guichet, ao dar os dados, senti-me agoniada, mal disposta, apitos na cabeça, tonturas, calores e frios... tinha que fugir para me recompôr, nem sabia bem de quê! Talvez nunca me tivesse imaginado actriz principal daquele filme e no entanto o momento era real. Éramos nós que estavamos ali.... nós e mais uma imensidão de mães, pais e filhos - a maior parte em profunda agonia, tentando sózinhos controlar as naturais "exaltações" dos seus filhos, crianças, adolescentes e adultos em quadro de complicadas perturbações.
Parecia-me um mundo à parte!
" Peço desculpa, mas não me estou a sentir bem e tenho de ser rápida. Tenho marcada para hoje uma consulta de Autismo com o meu filho. Ele está lá fora com pai, uma vez que estes ambientes sobrelotados o desiquilibram... Acha que a consulta vai demorar muito? (Pergunteí)"
" Minha senhora, então não pertence aqui. Aqui é acompanhamento de perturbações mentais graves, e multideficiência. A consulta de autismo, tem umm espaço próprio"
Indicou-me o caminho e saí a correr, sem olhar para trás! Senti-me como que atropelada por um camião e semi-reboque. Tinha sido "passada a ferro" pelo que os meus olhos viram. Não estava minimamente preparada. Desconhecia esta realidade e fraquejeí como uma covarde!
Já num outro espaço, por acaso, bastante mais acolhedor, fomos atendidos de forma exemplar, sem demoras, nem mais "dores". Agora já eram apenas as palavras que nos feriam mais. E a mim, paralelamente, a distinção dos locais de consulta, as expressões dos pais, o que vira, ouvira e sentira... aquele momento em si - remexia-se tudo em catadupa, na minha cabeça!
O tempo (entre muitas outras coisas), veio a mostrar-nos que a dor maior nasce das nossa mentalidades, daquilo que a sociedade nos transmite, da forma como somos "ensinados" a olhar para estas situações. A dor maior está, muitas vezes em nós e na ideia que temos em relação aquilo que é a diferença, por percebermos bem que ela é um mundo à parte, quando não nos toca a nós.
Normalmente, lamentamos de forma involuntária e expontanea a deficiência, em vez de a acolhermos e aceitarmos como parte da diversidade humana, igualmente capaz e útil.
A deficiência também pode ser eficiência, se bem enquadrada... Assim se façam "roupas" à sua medida e se criem os meios e as respostas adequadas.