
... Rodeada de um jardim quase edílico, sento-me e oiço apenas os pássaros que por aqui circundam. Observo as boas condições desta instituíção, que já conheço há algum tempo.
Entro no edifício, bebo um café. No bar, sentados estão adultos especiais - pela pureza, pela docura, pelo diagnóstico... Um nome que carregam com eles e que dizem, dura por toda uma vida. Por momentos penseí nas suas mães, talvez nos tenhamos vestido da mesma cor, aquando da "sentença" que cedo nos transmitiram para o futuro dos nossos filhos. Algumas diferenças marcam no entanto as situações - o prognóstico: que difere desde os casos mais graves aos de "melhor funcionamento"; e o tempo: a evolução das coisas que ele arrasta consigo - a bem e muitas vezes a mal. Ainda assim, felizmente para as mães de hoje e sobretudo para aquelas cujos filhos têm melhor prognóstico, as coisas vão evoluíndo.
Olho discretamente para eles... um ou outro olha-me directamente, observa-me e ri. Depois um grito forte, alguma agitação e outro doce sorriso, que saído daqueles rostos de adulto/criança me invadem, provocando-me a mais terna sensação que não posso aqui descrever. Apetece sentar-me com um deles e tentar que nos comuniquemos. Falar a sua lingua, nem sei se é a mesma que a minha, por isso acobardo-me e deixo-me estar quieta.Por isso e porque não quero perturbar nada daquela paz harmoniosa que paira na sala de bar da instituíção que é a casa deles. Guardo as minhas vontades, amachucando-as dentro de mim como papel que não presta e deixo-me estar. Tinha tanto amor para dar-lhes... Ou talvez tudo isto sejam ilusões que a realidade do dia-a-dia com eles, me mostrasse ser diferente, caso eu pudesse ali trabalhar. Não seí e nunca sabereí. Mas sinto tanto amor por eles...
Também este "amor", confesso que muito provavelmente devo ao meu filho. Por ele os meus olhos viram já até hoje coisas que balançaram totalmente a vida rotineira, superficial e algo egoísta que por certo eu iria levar. Não quero aqui descrever ao pormenor, nenhuma dessas minhas vivências porque "desvirtuaría" a realidade, que muito mais que escrita por alguém, só mesmo vivida por cada um é que podería ser totalmente compreendida! Duvido, no entanto que fosse muito diferente o sentir como a vida é capaz de fazer-nos transpôr os mais duros obstáculos, sem esperarmos.
Na verdade sinto-me "dorida", mas também muito enrriquecida.
A primeira vez que vim a este local, vinha com o pai e com o Vasco. O assunto era ele... recordo a dor dilacerante que não me deixava sequer raciocinar, quanto mais ver alguma coisa...recordo que pouco ouvi do que me diziam as técnicas e pouco mais sentia que dormência e dor na alma, até ao fundo, ao mais fundo que se possa imaginar. Também vi os adultos - como hoje, o jardim, as instalações... tudo estava mais ou menos na mesma... tudo, menos eu e o pai, que perdidos no meio de um temporal sem fim, ainda punhamos a hipótese de que estar ali seria apenas um pesadelo do qual acordaríamos em breve, para contar um ao outro como passamos a noite.
Os adultos que hoje vi e pelos quais senti de imediato um doce carinho, recordo na altura me terem parecido profundamente alheados do chão onde eu costumava colocar os meus pés...
Passaram alguns anos, e cá estou eu mais uma vez, neste magnífico jardim, com um silêncio dos deuses que me dá espaço e tempo para pensar tranquilamente, arrumando as ideias e recapitulando bocados de vida. Felizmente com outras emoções. Emoções que evoluíram positivamente após muita luta interior, num caminho que ainda terá muito mais estrada a percorrer.
Hoje, de facto as emoções são outras, mas são sempre muito fortes emoções!
Saio daqui com um raciocínio mais lógico e com a certeza de que estas estruturas são necessárias. Saio também com a esperança e o sonho, de que a resposta para o meu menino virá a ser outra, e o sonho hoje vai comandando a minha vida.
De qualquer forma, vou com uma parte de mim vazia, um lamento profundo, porque apesar de os querer ver, como felizes ali, este inexplicável vazio que levo, contraria a ideia.
Observo-os e não posso dizer que saio daqui feliz porque pelo menos para estes adultos existem bons recursos... Na verdade desejava outra vida para cada um destes homens! Talvez seja certo e legítimo este meu sentir... ou talvez não. Ainda não consigo aceitar esta forma de autismo que aqui observo (grave), como apenas uma outra forma de ser... ainda não "evoluí" nesse sentido, nem sei se quero. Ainda mantenho os meus pés no chão, e penso que sei distinguir o que nos surge como dificuldade mas com esperança, de onde ela já não existe sob forma nenhuma.
Este autismo adulto (grave) deixa-me uma marca por achar que a sua impenetrabilidade e alheamento lhes roubaram muito desta vida. Deixa-me uma marca porque imagino em cada um deles, uma história familiar dolorosa e um futuro sem horizontes, nem expectativas.
Mesmo assim e no meu desespero em procurar o positivo, que acredito haver em todas as situações, encontro como privilégio só deles, o facto de que a tal impermeabilidade deles a esta vida, também os salvaguarda de irem conhecendo as coisas mais vís e sujas que por aí abundam, e como tal, naturalmente a felicidade também existirá nos seus corações, pelo menos em alguns momentos.